sexta-feira, 7 de setembro de 2007

Prova CESPE - PROCURADOR FEDERAL DE 2.ª CATEGORIA – 2002

Prova comentada por Henrique Nuno Fernandes

Texto I – questões 01 e 02

Nas sociedades contemporâneas, ocorre um processo de 1
retirar da própria regra sua nitidez, sua precisão. De um lado, os
agentes se reportam a ela como se suas próprias ações sempre
tivessem um lado excepcional, como se aquilo que fizeram não 4
viesse a ser bem o caso da regra. Mas, de outro, e isso é mais
importante, as regras e as instituições de vigilância oscilam em
relação aos casos a que se aplicam, como se seus sentidos 7
fossem sempre relaxados, passíveis de interpretações desviantes.
A impunidade que daí deriva não está ligada, pois, a diferenças
sociais que impliquem que nem todos sejam iguais perante a lei,
mas tão-só a que todos se submetem a ela como se vestissem 11
roupas muito maiores que as devidas. A sociedade moderna é
democraticamente relaxada.
Por isso não me satisfaz designá-la como sociedade do 14
espetáculo. A tragédia clássica não seguia regras muito bem
definidas? As imprecisões por que passam as regras que
norteiam nossas condutas não estão atravessadas pela oposição 17
entre essência e aparência, não formamos uma sociedade de
sofistas, mas nos comportamos como se todos estivéssemos
acometidos de astigmatismo, de tal modo que entre o real e a 20
gramática que nos permite falar dele sempre se exerce um
método de projeção em constante hipertrofia. É como se
medíssemos uma distância com metros de borracha, por meio de 23
categorias topológicas, porquanto se relaxaram as regras de
poluído por vagas interpretações e por jurisprudências 26
coniventes, vem a ser natural que os agentes se voltem para as
esferas da vida íntima, onde eles próprios agem e vigiam suas
próprias ações, recusando a mediação de terceiros. 29
No entanto, nessa barbárie da indefinição, contra a qual
o legalismo e o totalitarismo pretendem aparecer como os
remédios mais eficazes, convém observar a riqueza de novos 32
horizontes possíveis. Não é nesses caldos que também se
desenvolvem os germes da liberdade? Mas, para isso, seria
preciso que se armasse uma esfera da reflexão vigilante, capaz 35
de espelhar todo esse processo segundo uma gramática de
compensações ponderadas.

José Arthur Giannotti. Folha de S. Paulo, “Mais!”, 3/3/2002, p. 9 (com adaptações).

01. Em relação às inferências permitidas pelas idéias do texto I, julgue os itens a seguir.

1. Geralmente, as ações dos agentes sociais contemporâneos tendem a ser justificadas com um caráter de exceção às regras.

1. Item Correto – No segundo período do primeiro parágrafo, o autor afirma que as ações dos agentes são justificadas como se “sempre tivessem um lado excepcional, como se aquilo que fizeram não viesse a ser bem o caso da regra”. Isso significa que os agentes interpretam as regras a seu bel-prazer.

2. A impunidade que deriva da imprecisão das regras abrange de forma diferente os diversos transgressores, sempre de acordo com o segmento social ao qual pertencem.

2. Item Errado – A impunidade que deriva da imprecisão das regras não abrange de forma diferente os diversos transgressores, sempre de acordo com o segmento social ao qual pertencem. Vejamos o que diz o texto: “A impunidade que daí deriva não está ligada, pois, a diferenças sociais que impliquem que nem todos sejam iguais perante a lei, mas tão-só a que todos se submetem a ela como se vestissem roupas muito maiores que as devidas”. Em outras palavras, todas as classes interpretam as leis de acordo com suas conveniências.

3. A forma de vida moderna tem sido chamada de sociedade do espetáculo, porque obedece às regras estabelecidas pelos autores das tragédias clássicas, como Sófocles, Ésquilo e Eurípedes.

3. Item Errado – Deduz-se que a tragédia clássica era de espetáculo e possuía regras definidas. A sociedade contemporânea, ao contrário, tem regras nebulosas, por isso, não agrada ao autor chamá-la de sociedade de espetáculo.

4. O tecido das relações e instituições públicas está prejudicado, uma vez que eivado de regras legais construídas a partir de compromissos e interesses escusos, bem como de possibilidades de interpretações nebulosas e equivocadas.

4. Item Correto – O fato de se criarem leis para atender compromissos e interesses escusos, bem como de possibilidades de interpretações nebulosas e equivocadas prejudica o tecido das relações e instituições públicas, uma vez que as leis tornam-se confusas, e o interesse de grupos e até de particulares se sobrepõe ao da sociedade como um todo. Vejamos o último período do segundo parágrafo: “Nessas condições, em que o espaço público está poluído por vagas interpretações e por jurisprudências coniventes, vem a ser natural que os agentes se voltem para as esferas da vida íntima, onde eles próprios agem e vigiam suas próprias ações, recusando a mediação de terceiros”.

5. O que faz os agentes sentirem-se no direito de decidir individualmente, sem intermediários institucionais ou outros agentes que detêm a prerrogativa da decisão, é uma instância de reflexão contínua que espelha o processo social.

5. Item Errado – O que faz os agentes sentirem-se no direito de decidir individualmente, sem intermediários institucionais ou outros agentes que detêm a prerrogativa da decisão, é a falta de uma instituição reflexão contínua. Para o autor, a solução “seria preciso que se armasse uma esfera de reflexão vigilante, capaz de espelhar todo esse processo segundo uma gramática de compensações ponderadas”. A forma verbal “seria” indica que essa reflexão ainda não ocorreu.


02. No que se refere às estruturas do texto I, julgue os itens abaixo.

1. Ao se substituir o termo “a que” (l.7) por aos quais, as relações sintáticas e semânticas do texto não se alteram.

1.Item Correto – O pronome relativo “que” pode ser substituído por “o qual”, “a qual”, “os quais”, “as quais”. Como “que” se refere anaforicamente a “casos”, pode ser substituído por “os quais”; juntando-se o pronome “os quais” à preposição “a”, exigida pela forma verbal “se aplicam” (= aplicar-se a), obteremos “aos quais”. Observemos a substituição: “... oscilam em relação aos casos aos quais se aplicam ( = aplicam-se aos quais).

2. (adaptada) A substituição da palavra “pois” (l.9) por “porque” mantém as relações semânticas idênticas às do texto original.

2. Item Errado – O conectivo ”pois” indica conclusão, podendo ser substituído por “portanto”; já “porque” expressa causa, o que modificaria as relações de sentido, alem de tornar a frase gramaticalmente incorreta.

3. No segundo parágrafo, o emprego da primeira pessoa do singular e da primeira pessoa do plural torna o enunciado ambíguo e prejudica a coerência necessária ao texto argumentativo.

3. Item Errado – O uso da primeira pessoa do singular e da primeira pessoa do plural não torna o enunciado ambíguo nem prejudica a coerência necessária ao texto argumentativo. Ao usar a primeira pessoa do singular, o autor expressa um ponto de vista particular (não lhe satisfaz designá-la como sociedade de espetáculo). O emprego da primeira pessoa do plural é uma estratégia argumentativa que visa a promover a inclusão e possível adesão do leitor como participante das opiniões do autor.

4. Nas linhas 21 e 36, a palavra “gramática”, em ambas as ocorrências, está sendo utilizada em sentido conotativo, privilegiando a noção de sistema analítico aplicado à realidade e não à língua.

4. Item Correto – Em sentido denotativo ( = real, literal), “gramática” é “um conjunto de normas para se escrever e falar corretamente”. Por analogia, o autor usa o termo ”gramática” em sentido conotativo (figurado) para indicar “um conjunto de normas jurídicas”.

5. O emprego da expressão “pretendem aparecer” (l.31) é um recurso que atenua a possível afirmativa categórica da qual o enunciador não é partidário: legalismo e totalitarismo são os remédios eficazes para a barbárie.

5. Item Correto – Na forma verbal “pretendem aparecer”, o auxiliar ”pretendem” é modalizador, isto é, indica possibilidade, o que permite a inferência de que o “legalismo” e o “totalitarismo” não são fatos consumados, há outras alternativas.

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