sexta-feira, 7 de setembro de 2007

Prova FCC – TRF DA 4ª REGIÃO Analista Judiciário – Área Judiciária – Especialidade Execução de Mandados – 2007

Prova comentada por Henrique Nuno Fernandes


Atenção: As questões de números 1 a 10 referem-se ao texto que segue.

Para que servem as ficções?

Cresci numa família em que ler romances e assistir a filmes, ou seja, mergulhar em ficções, não era considerado uma perda de tempo. Podia atrasar os deveres ou sacrificar o sono para acabar um capítulo, e não era preciso me trancar no banheiro nem ler à luz de uma lanterna. Meus pais, eventualmente, pediam que organizasse melhor meu horário, mas deixavam claro que meu interesse pelas ficções era uma parte crucial (e aprovada) da minha “formação”. Eles sequer exigiam que as ditas ficções fossem edificantes ou tivessem um valor cultural estabelecido. Um policial e um Dostoiévski eram tratados com a mesma deferência. Quando foi a minha vez de ser pai, agi da mesma forma. Por quê?
Existe a idéia (comum) segundo a qual a ficção é uma “escola de vida”: ela nos apresenta a diversidade do mundo e constitui um repertório do possível. Alguém dirá: o mesmo não aconteceria com uma série de bons documentários ou ensaios etnográficos? Certo, documentários e ensaios ampliam nossos horizontes. Mas a ficção opera uma mágica suplementar.
Tome, por exemplo, “O Caçador de Pipas”, de Khaled Hosseini. A leitura nos faz conhecer a particularidade do Afeganistão, mas o que torna o romance irresistível é a história singular de Amir, o protagonista. Amir, afastado de nós pela particularidade de seu grupo, revela-se igual a nós pela singularidade de sua experiência. A vida dos afegãos pode ser objeto de um documentário, que, sem dúvida, será instrutivo. Mas a história fictícia “daquele” afegão o torna meu semelhante e meu irmão.
Esta é a mágica da ficção: no meio das diferenças particulares entre grupos, ela inventa experiências singulares que revelam a humanidade que é comum a todos, protagonistas e leitores. A ficção de uma vida diferente da minha me ajuda a descobrir o que há de humano em mim.
Enfim, se perpetuei e transmiti o respeito de meus pais pelas ficções é porque elas me parecem ser a maior e melhor fonte não de nossas normas morais, mas de nosso pensamento moral.

(Contardo Calligaris, Folha de S. Paulo, 18/01/2007)


1. O autor do texto vale-se dos conceitos de “particularidade” e “singularidade” para desenvolver a idéia de que

(A) tanto os documentários como as ficções apresentam teses genéricas e abstratas acerca das diferenças entre os grupos étnicos.
(B) as diferenças entre grupos, particularizadas em ensaios e documentários, dão lugar às semelhanças humanas, singularizadas nas ficções.
(C) as diferenças entre grupos são apontadas com maior rigor nas ficções que em ensaios científicos ou documentários étnicos.
(D) os valores singularizados nas ficções ganham maior alcance e compreensão quando particularizados em ensaios ou documentários.
(E) as ficções caracterizam-se pela capacidade de particularizar as experiências humanas singularizadas nos documentários e ensaios.

1. Resposta: B – As diferenças entre grupos, particularizadas em ensaios e documentários, dão lugar às semelhanças humanas, singularizadas nas ficções. Vejamos a comprovação no texto: "Esta é a mágica da ficção: no meio das diferenças particulares entre grupos, ela inventa experiências singulares que revelam a humanidade que é comum a todos, protagonistas e leitores".

Comentário sobre as outras alternativas:

a) O texto não faz referência a teses acerca das diferenças entre os grupos étnicos.
c) Deduz-se do texto que as diferenças entre grupos são apontadas com menor rigor nas ficções do que em ensaios científicos ou documentários étnicos, visto que elas inventam “experiências singulares que revelam a humanidade que é comum a todos, protagonistas e leitores”.
d) O correto desta alternativa seria: os valores particularizados em ensaios e documentários ganham maior alcance quando singularizados nas ficções “, mas o que torna o romance irresistível é a história singular de Amir, o protagonista. Amir, afastado de nós pela particularidade de seu grupo, revela-se igual a nós pela singularidade de sua experiência”).
e) As experiências humanas não são singularizadas nos documentários e ensaios, e, sim, nas ficções: “... o que torna o romance irresistível é a história singular de Amir...”.

2. Considere as seguintes afirmações:

I. Apesar da opinião que tinham seus pais sobre o que deveria constituir a “formação” de um jovem, o autor entregava-se ao prazer que lhe proporcionavam as formas ficcionais.

II. O autor reconhece que documentários e ensaios, ao contrário das ficções, ampliam nossos horizontes e exploram as diversidades da vida social.

III. O poder da ficção, para o autor, está em nos fazer reconhecer, a partir de um indivíduo fictício, o sentido de uma humanidade que é tanto dele como nossa.

Em relação ao texto, está correto somente o que se afirma em

(A) I.
(B) II.
(C) III.
(D) I e II.
(E) II e III.

2. Resposta: C – Somente o item III está correto: “Esta é a mágica da ficção: no meio das diferenças particulares entre grupos, ela inventa experiências singulares que revelam a humanidade que é comum a todos, protagonistas e leitores. A ficção de uma vida diferente da minha me ajuda a descobrir o que há de humano em mim”.

Comentário sobre os demais itens:

I – Errado: Não há oposição (apesar de = concessão) entre a opinião dos pais e a do autor. Ao contrário, eles achavam a ficção fundamental para a ‘formação’ do filho: “mas deixavam claro que meu interesse pelas ficções era uma parte crucial (e aprovada) da minha ‘formação’.

II – Errado: Para o autor, tanto documentários e ensaios quanto ficções ampliam nossos horizontes. Porém, a ficção possui “uma mágica suplementar”, o que a torna mais atrativa.

3. A frase que bem ilustra o que entende o autor por “mágica suplementar” é:

(A) (...) perpetuei e transmiti o respeito de meus pais pelas ficções (...)
(B) Eles sequer exigiam que as ditas ficções fossem edificantes ou tivessem um valor cultural estabelecido.
(C) Certo, documentários e ensaios ampliam nossos horizontes.
(D) Um policial e um Dostoiévski eram tratados com a mesma deferência.
(E) (...) a história fictícia “daquele” afegão o torna meu semelhante e meu irmão.

3. Resposta: E – A mágica suplementar é o fato de a ficção nos revelar, a partir de um indivíduo fictício, a semelhança entre a humanidade dele e a nossa: “no meio das diferenças particulares entre grupos, ela inventa experiências singulares que revelam a humanidade que é comum a todos, protagonistas e leitores. A ficção de uma vida diferente da minha me ajuda a descobrir o que há de humano em mim”.

4. Considerando-se o contexto, traduz-se corretamente o sentido de uma frase ou expressão do texto em:

(A) sequer exigiam que as ditas ficções fossem edificantes = nem ao menos impunham que as supostas atividades tivessem algum valor ficcional.
(B) eram tratados com a mesma deferência = eram considerados como formas indistintas de expressão.
(C) a ficção opera uma mágica suplementar = a ficção se investe de uma magia excessiva.
(D) não de nossas normas morais, mas de nosso pensamento moral = não da moralidade pragmática, mas da moralidade reflexiva.
(E) afastado de nós pela particularidade de seu grupo = que nos impede de reconhecer sua excentricidade étnica.

4. Resposta: D – As duas expressões se equivalem semanticamente.

Comentário sobre as outras alternativas:

a) sequer exigiam que as ditas ficções fossem edificantes = nem ao menos impunham que fossem moralizadores;
b) eram tratados com a mesma deferência = eram tratados com igual consideração;
c) a ficção opera uma mágica suplementar = a ficção produz um encanto adicional;
e) afastado de nós pela particularidade de seu grupo = distanciado de nós peculiaridade de sua etnia.

5. É INCORRETO afirmar que o autor do texto

(A) considera reprovável a idéia, muito disseminada, de que a ficção é uma “escola de vida”.
(B) não deixa de creditar à formação que recebeu em casa um valor que ele próprio viria, quando pai, a incorporar como formador.
(C) deparou-se, ao ler o romance de Khaled Hosseini, com mais um caso em que se pode constatar a “mágica da ficção”.
(D) não considera que o caráter ficcional de um romance seja um obstáculo para a compreensão da realidade humana.
(E) entende que uma história fictícia pode ampliar nossos horizontes ainda mais do que um documentário realista.

5. Resposta: A – Para o autor, ao contrário do que afirma a alternativa A, a ficção é uma “escola de vida”. Vejamos no texto: “Existe a idéia (comum) segundo a qual a ficção é uma ‘escola de vida’: ela nos apresenta a diversidade do mundo e constitui um repertório do possível”.

Todas as outras afirmações encontram comprovação no texto:

a) não deixa de creditar à formação que recebeu em casa um valor que ele próprio viria, quando pai, a incorporar como formador: “Eles sequer exigiam que as ditas ficções fossem edificantes ou tivessem um valor cultural estabelecido. (...) Quando foi a minha vez de ser pai, agi da mesma forma”.
c) deparou-se, ao ler o romance de Khaled Hosseini, com mais um caso em que se pode constatar a “mágica da ficção”: “Esta é a mágica da ficção: no meio das diferenças particulares entre grupos, ela inventa experiências singulares que revelam a humanidade que é comum a todos, protagonistas e leitores. A ficção de uma vida diferente da minha me ajuda a descobrir o que há de humano em mim”.
d) não considera que o caráter ficcional de um romance seja um obstáculo para a compreensão da realidade humana: “no meio das diferenças particulares entre grupos, ela inventa experiências singulares que revelam a humanidade que é comum a todos, protagonistas e leitores. A ficção de uma vida diferente da minha me ajuda a descobrir o que há de humano em mim”.
e) entende que uma história fictícia pode ampliar nossos horizontes ainda mais do que um documentário realista: “Certo, documentários e ensaios ampliam nossos horizontes. Mas a ficção opera uma mágica suplementar”.

6. As normas de concordância verbal estão plenamente respeitadas na frase:

(A) A nem todos os pais são dados reconhecer que filmes e romances constituem elementos vitais para a formação dos filhos.
(B) Ainda que não tivesse outros méritos, as ficções sempre apresentariam a diversidade do mundo e constituiriam um repertório do possível.
(C) Sejam num ensaio ou num documentário, a caracterização de valores étnicos representam-se de modo distinto do das ficções.
(D) Para além das diferenças étnicas que pode um ensaio revelar, há aquela semelhança humana que somente às ficções cabe dar viva expressão.
(E) O respeito pelas ficções, que o autor reconhece na formação que lhe deram seus pais, viriam a inspirá-lo na educação de seus filhos.

6. Resposta: D – O sujeito de “pode revelar” é “um ensaio” (= um ensaio pode revelar); o verbo “haver” também está bem empregado; o sujeito de “cabe” é “dar viva expressão” (dar viva expressão cabe às ficções). Obs.: Quando o sujeito for oracional, isto é, uma oração subjetiva, o verbo da oração principal fica sempre no singular.

Correção das demais alternativas:

a) o sujeito de “ser dado a reconhecer” é oracional, por isso o verbo “ser” deveria estar no singular: que filmes e romances constituem elementos vitais para a formação dos filhos (sujeito oracional, ou seja, formado por verbo) é dado a reconhecer (...).
b) O sujeito do verbo “ter” é “as ficções”, com núcleo no plural, por isso o verbo deve ir para o plural (=Ainda que as ficções – sujeito – não tivessem outros méritos...).

c) As formas “Sejam” e “representam-se” estão erradas, pois devem concordar com o núcleo “caracterização”. Vejamos na ordem direta: A caracterização de valores étnicos representa-se de modo distinto do das ficções, seja num ensaio ou num documentário.
e) O sujeito de “vir a inspirar” é “o respeito pelas ficções”, cujo núcleo é respeito – singular. Assim, a forma verbal deve ficar no singular. (= O respeito pelas ficções viria a inspirá-lo na educação de seus filhos).


7. Transpondo-se para a voz passiva a frase “transmiti o respeito de meus pais pelas ficções”, a forma verbal resultante será

(A) fora transmitido.
(B) transmitiram-se.
(C) foi transmitido.
(D) terá sido transmitido.
(E) transmitiram-me.


7. Resposta: C – Na passagem da voz ativa para a passiva analítica, o objeto direto (o respeito de meus pais pelas ficções) passa para sujeito paciente; troca-se o verbo (transmiti) pelo “ser” no mesmo tempo e modo (= foi) e acrescenta-se o particípio do verbo da voz ativa (= transmitido); o sujeito da ativa (= eu) passa a agente da passiva, precedido da preposição “por” (= por mim): O respeito de meus pais pelas ficções foi transmitido por mim.

8. A frase “A ficção de uma vida diferente da minha me ajuda a descobrir o que há de humano em mim” ganha nova redação, correta e coerente com as idéias do texto, em:

(A) Ajuda-me a revelar o que há de humano em mim a representação ficcional de uma vida que não é a minha.
(B) Embora diferente de uma vida ficcional, por ela é que me ajuda a descobrir a minha humanidade.
(C) O que há de humano em mim me ajuda a descobrir a outra verdade de uma vida ficcional.
(D) O que me ajuda na ficção de uma vida diferente é quando, mesmo sendo ficcional, me faz descobrir como ser humano.
(E) É na ficção, mesmo onde a vida é diferente da minha, que ela me ajuda a descobrir o quanto tem de humano em mim.

8. Resposta: A – A frase da alternativa A é uma reescritura equivalente à frase do enunciado.

Correção das demais alternativas:

b) A vida ficcional, diferente da minha, ajuda-me a descobrir a minha humanidade.
c) A outra verdade de uma vida ficcional ajuda-me a descobrir o que há de humano em mim.
d) A ficção de uma vida diferente da minha ajuda-me a descobrir a humanidade que existe em mim.
e) A vida de ficção, diferente da minha, ajuda-me a descobrir o quanto tem de humano em mim.

9. A frase “Cresci numa família em que ler romances e assistir a filmes (...) não era considerado uma perda de tempo” permanecerá formalmente correta caso se substitua a expressão destacada por

(A) aonde.
(B) para a qual.
(C) em cuja.
(D) dentre à qual.
(E) da qual.

9. Resposta: B – A única forma correta é “para a qual” (não era considerado uma perda de tempo para a qual = para a família).

10. Está correta a articulação entre os tempos e modos verbais na frase:

(A) Embora a leitura nos faça conhecer a particularidade do Afeganistão, o que tornaria o romance irresistível será a história singular de Amir, o protagonista.
(B) Mesmo que a leitura nos fazia conhecer a particularidade do Afeganistão, o que torna o romance irresistível teria sido a história singular de Amir, o protagonista.
(C) Tanto mais a leitura nos fazia conhecer a particularidade do Afeganistão, tanto mais a história singular de Amir, o protagonista, tornou o romance irresistível.
(D) Se a leitura nos fazia conhecer a particularidade do Afeganistão, o que tornava o romance irresistível era a história singular de Amir, o protagonista.
(E) A leitura nos faria conhecer a particularidade do Afeganistão, mas fora a história singular de Amir, o protagonista, que tornasse o romance irresistível.

10. Resposta: D – Todos os verbos se encontram no pretérito imperfeito, indicando ações simultâneas, passadas e habituais. Assim, estão bem articulados.

Correção das demais alternativas:

a) O presente do subjuntivo (faça) se articula com o presente do indicativo – torna e é. Correção: Embora a leitura nos faça conhecer a particularidade do Afeganistão, o que torna o romance irresistível é a história singular de Amir, o protagonista
b) O conectivo “Mesmo que”, concessivo, leva o verbo para o subjuntivo – faça; o presente do subjuntivo (faça) se articula com o presente do indicativo – torna e é. Correção: Mesmo que a leitura nos faça conhecer a particularidade do Afeganistão, o que torna o romance irresistível é história singular de Amir, o protagonista.
c) O pretérito imperfeito “fazia” exige o também o imperfeito – tornava. Correção: Tanto mais a leitura nos fazia conhecer a particularidade do Afeganistão, tanto mais a história singular de Amir, o protagonista, tornava o romance irresistível.
e) O futuro do pretérito “faria” articula-se com o mesmo futuro do pretérito – seria – e tornaria. Correção: A leitura nos faria conhecer a particularidade do Afeganistão, mas seria a história singular de Amir, o protagonista, que tornaria o romance irresistível.

2 comentários:

izaul disse...

Sou um fã de suas obras gostaria de ter posse de uma delas " Português para Concursos "

izaul disse...

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